Ele chega com um jornal debaixo do braço. Meia idade, roupa um pouco rota, semblante apreensivo. Parece ser uma pessoa de poucas palavras, solitária, vivendo de uma parca aposentadoria do INSS. Victor, nome que escolho para ele, senta-se no seu banco de praça cativo, como se tivesse feito reserva de lugar por aplicativo de celular. No seu caso, um simples hábito de alguém sistemático.
Certamente vai começar pela página de classificados, como sempre faz. O jornal é do dia anterior, comprado por centavos no saldão do jornaleiro, na mesma banca onde compro o meu de hoje.
Circula alguns anúncios com caneta vermelha, imagino que para as oportunidades mais promissoras, e outros em amarelo, talvez aqueles que mereçam menos atenção. A pesquisa, pelos meus registros, demora quinze minutos. Sua relação com a praça se limita a essa busca, provavelmente de emprego. Quando termina, Victor se levanta e vai embora, deixando o jornal no banco. Será que não vai precisar conferir os anúncios?
Lá pelas nove horas, chega uma mulher de meia-idade, que, para mim, tem cara de Natália. Vestida de preto, cabelos amarrados na nuca, duas alianças no dedo anelar da mão esquerda – sinal de viuvez. Traz consigo uma bolsa a tiracolo, um guarda-chuva e um chapéu. Escolhe o banco com uma mesa em frente e toma posse dela. Tira o material de artesanato da bolsa, que, pelo que observo, não vende, só distribui – deve ser uma alma muito caridosa, pois se dedica a ensinar bordado em panos de prato aqui na praça. Já tem um grupo de alunas. Garotas bem apessoadas, graciosas, mas que provavelmente precisam de um dinheiro extra.
Natália espalha sobre a mesa alguns panos, linhas, rendinhas e o caderno de anotações. As garotas chegam uma de cada vez, parece que a aula é com horário marcado. Cada uma fica ali por uns quinze minutos recebendo as instruções. Escolhem os panos e as linhas, dão alguns pontinhos nos recortes da amostra que Natália já deixou separada com o nome de cada uma e, depois, vão embora.
Algo me chama a atenção. Natália usa o jornal deixado por Victor para enrolar o material que fornece às alunas para os bordados em casa. Outra coisa que eu estranho, e me deixa curiosa, é sua didática. As garotas não trazem nada de casa para mostrar na semana seguinte. Não deveriam apresentar o resultado alcançado? Mas, sei lá, vai ver que elas conseguem logo vender seus trabalhos.
A rotina é a mesma: assim que as alunas vão embora, chega um senhor de terno e se senta no banco ao lado, um pouco afastado de Natália. Não se cumprimentam, não dizem uma palavra, mas para mim eles se conhecem, pois trocam olhares. Imagino que seja um fã, um possível romance porque, afinal, a viúva é uma senhora bem bonita.
Ele fuma calmamente um cigarro e depois parte. Antes de ir embora, porém, joga o maço vazio no chão – que coisa horrorosa! Dei a ele o nome de Vladimir.
Natália, antes de partir, junta os restos de linha e de pano para descartar na lixeira da praça. Aproveita para catar o maço de cigarros de Vladimir, como faz toda semana, é quase um ritual. Agradeço a gentileza com o planeta.
Da sacada do sobrado, em frente à praça, sentada no meu posto de observação, me distraio buscando pistas que me façam criar histórias para seus anônimos visitantes.
Faço isso enquanto espero sair mais uma fornada das tortas que entrego em domicílio. Labuta diária que me cansa, irrita, e tira todo o prazer de cozinhar. Adoro experimentar ingredientes e temperos novos, uma cozinha exótica – nada a ver com essas tortas padrão que faço para clientes, uma coisa repetitiva e sem a menor graça. Quer dizer, em parte, pois me encanta o dinheiro que recebo com isso. Já tenho guardada uma quantia quase suficiente para realizar o meu plano secreto – e aí, adeus!
Ali, enquanto sovo a massa da torta, me consolo sonhando com o Samantha’s Bistrô - meu restaurante num charmoso chalé nas montanhas. Cozinha autoral, especializado em caças e aves da região. Já antevejo até a roupa que vou usar para as fotos, no dia em que ganhar o prêmio de Chef revelação. E, de espera em espera, volto matutando para o meu palco no terraço.
E se houvesse conexão entre a vida de Victor, Natália e Vladimir? Deixo fluir meu gosto por investigação, alimentado pelos livros de Sherlock Holmes lidos na infância. De repente, uma faísca me faz brilhar os olhos. — O jornal esquecido, a visita das garotas levando trabalho para casa, e nunca entregando resultado, o maço de cigarro jogado ao chão... será que matei a charada?
Victor circula os anúncios e deixa o jornal no banco, passando assim uma mensagem secreta, que será recolhida por Natália. A professora dá instruções às alunas e embrulha o trabalho no jornal com a mensagem. Vladimir, o russo chefe da organização, passa a missão da próxima semana à Natália usando o maço de cigarro que ela finge jogar na lixeira, junto com os restos de linhas e panos.
Sim! Descobri uma quadrilha!
Amanhã ficarei de olhos abertos para ver se encontro mais alguma pista que confirme minhas suposições. Aliás, vou passar agora na banca para comprar o jornal de hoje, assim consigo, quem sabe, identificar amanhã o que Victor circulará.
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JORNAL O GLOBO
PRESA EM SÃO PAULO NATÁLIA BUTINA, A VIÚVA NEGRA.
Treinada pela Sala Vermelha, organização que mantém laços com a KGB, treinava jovens mulheres para se tornarem espiãs e assassinas.