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A triste sina de um enojado

Salviano sorri, tira as luvas e o avental e sente o perfume de lavanda do limpador de piso que aplicou no assoalho de madeira do apartamento. Encarando o espanador comenta: “Como gosto de limpeza!”

Preferia morar sozinho, cuidar de suas próprias coisas, mesmo que isso representasse assumir tarefas domésticas, que nunca havia feito. Sim, porque quando morava na casa da mãe, não precisava se preocupar com nada – tinha tudo perfeito e a tempo, do jeito que gostava. As roupas passadas e organizadas por cores no armário, os sapatos limpos e engraxados nas caixas, os ternos de trabalho passados e as camisas de colarinho sem uma ruga.


Fazia questão de dedicar uma parte do seu tempo aos esportes, esculpindo o corpo na academia. antes encarar o dia de trabalho como executivo de um portal de investimentos. As noites eram dedicadas à namorada e, aos sábados, trajando um avental e luvas de borracha, cuidava da casa. Tinha sempre um estoque delas, pois lavar louça, limpar o vaso sanitário, sem luvas? Em nenhuma hipótese. Na boa acepção da palavra, era um enojado.


A vida assim organizada transcorria em perfeita harmonia. A namorada em sua casa, ele, na dele. Débora era uma garota cheia de vida; amorosa, designer de joias, tudo como ele gostava. Já namoravam há anos, e a relação caminhava para uma vida compartilhada. Na visão de Salviano, porém, ela tinha um pequeno defeito de fábrica: era apaixonada por cachorros. Ele tinha verdadeiro horror de pelos pela casa, dejetos a serem catados, odores, enfim, tudo o que vinha no pacote, quando se convive com um animal em casa, ou pior, em um apartamento.


Cada vez que pensava nessa incompatibilidade, a cabeça dele estalava. Corria a tomar uma Neosaldina, se acalmava e repetia o mantra: Ela nunca faria isso comigo... Ela nunca faria isso comigo.


Não tardou para que o namoro se transformasse em união. Débora se mudou para o apartamento de Salviano, e para que tudo continuasse na mais perfeita ordem e limpeza, entraram num acordo sobre as tarefas domésticas. Ela cuidaria da comida e da máquina de lavar roupa e ele da limpeza e da arrumação da casa, sua especialidade.


Tudo foi caminhando, e com um ajuste daqui e outro dali a vida seguia tranquila. Até que um dia, Salviano chegou em casa do trabalho e seu queixo começou a tremer, a boca entortou, os olhos esbugalharam. No colo de Débora, um ser peludo abanava o rabo para ele, na maior desfaçatez.

⎯ Débora, o que significa essa visita canina aqui em casa?

⎯ Deixa eu te explicar, paixão... aconteceu! Não foi minha intenção, mas coisa do destino, sabe? Eu estava quase chegando em casa quando vi essa cadelinha perdida, morrendo de frio e de medo. E aí, sabe como eu sou, né? Não pude deixá-la ali, no relento. Mas ela é uma cachorra de raça, deve ter um dono, então vamos colocar um anúncio nas redes sociais. Tenho certeza de que logo alguém vai dar por falta e virá buscá-la.


⎯ Calma! pensou Salviano. Não franze tanto a sobrancelha que isso dá rugas! Aprume-se, sempre há de haver uma solução. Mas, antes de qualquer providência mais estratégica, vamos à prática:

⎯ Dé, você não deixou essa visita no chão, correto? Porque enquanto não nos livrarmos dela, a peluda fica no seu colo. E acho melhor você já colocar nela, em posição estratégica, um absorvente. É a única coisa que me vem à cabeça, já que não temos nada mais apropriado, e xixi em casa, nem pensar!


⎯ Isso já alinhado, vamos à estratégia de descarte. Minha sugestão é logo depois de colocarmos o aviso nas redes sociais, você descer e se sentar na entrada do prédio (tem umas cadeiras confortáveis ali), à espera do dono. A gente fica atento ao retorno nas redes; temos a associação de bairro, o pessoal da rua, enfim, alguém há de estar procurando a bichinha.


E assim foi feito. O tempo passou, começou a escurecer, e nada. Débora esperou pacientemente na porta do prédio. Submissão? Nada disso! O primeiro passo de seu plano de introdução da cadelinha que acabara de adotar estava dando certo. O próximo foi o apelo emocional. Sabia que o namorado, mesmo cheio de manias de limpeza e horror aos peludos, tinha um bom coração. Assim, quando a noite caiu fria, e ninguém havia reclamado pelo sumiço de uma cachorrinha, ela subiu ao apartamento.

Salviano se deparou com uma dupla enregelada e não teve outro jeito senão acolher a visitante por uma noite. E pela segunda, terceira, quarta, e todas as outras noites.


Qual foi a solução que ele encontrou para manter a casa da forma como exigia não sabemos. Mas a verdade é que os vizinhos passaram a vê-lo todos os dias dando uma corrida matinal pelo bairro, como sempre fez, mas acompanhado de uma cadelinha risonha. Na cintura, luvas de borracha e saquinhos para recolher os dejetos.

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