Ainda reclinada no divã, sentindo as pálpebras pesadas e o corpo extenuado como se tivesse percorrido quilômetros em passo acelerado, Olívia abre os olhos, fita o teto, tenta organizar o pensamento e se faz uma derradeira pergunta: “E o que aconteceu com minha mãe?”
Olívia se senta para tomar café da manhã e, já atrasada para o trabalho, comenta com a colega com quem divide um pequeno apartamento, ao lado da faculdade:
— Noitada novamente...Bastou Rodrigo falar em casamento e eu voltei a ter aqueles sonhos sem sentido. Parece loucura minha fazer essa relação, pois os sonhos nada têm a ver com ele, mas me dão uma sensação muito estranha. Mas sei lá, melhor deixar quieto.
Rapidamente dirigiu-se ao ponto de ônibus. Sua rotina era corrida, mas prazerosa: trabalho, faculdade, encontro com Rodrigo no final do dia. Ele tinha passado no concurso de perito criminal e estava muito entusiasmado com a profissão, apesar de ter que andar uniformizado.
A noite com Rodrigo transcorreu como sempre. Olívia sentia por ele um desejo enlouquecedor, mas, conforme ia se aproximando do clímax, alguma coisa a refreava e ela acabava não se entregando totalmente. Isso já vinha desde o início do namoro e era perturbador. Sabia que tinha alguma coisa errada, mas não conseguia identificar a origem do pânico que a invadia.
O mais assustador era que, conforme o namoro ia se desenvolvendo, mais frequente era o sonho indecifrável que a fazia acordar sobressaltada: via em um local escuro uma criança, da qual não conseguia identificar o rosto porque esta estava de costas, parada em frente a uma porta aberta. Ouvia gritos de pavor, mas não era a menina que gritava, e sim uma mulher. Então sentia um flash de luz que a cegava e não conseguia ver mais nada.
Quando esses sonhos começaram, Olívia não deu muita atenção, pois sempre foi uma criança dada a ter pesadelos. “Isso passa com o tempo”, dizia a madrinha, procurando cobri-la de mimos para compensar.
Órfã desde os cinco anos, tinha sido criada pela irmã de sua mãe Nélia, esposa de diplomata, o que fez com que Olívia tivesse vivido em diferentes lugares do mundo, até entrar para a faculdade e fixar residência no Brasil. Daí a vida independente de estudante, o trabalho para complementar a mesada que recebia dos tios e o novo namorado.
Nunca soube muita coisa sobre seus pais. Tia Nélia alegava que tivera pouca convivência com eles, pois sempre viajou muito. Contou que eles morreram em acidente, que a família era pequena, e que não tinham outros parentes próximos. Assim, a adoção de Olívia pelos tios, que não tinham filhos e uma ótima situação financeira, foi o caminho natural.
Para Olívia, isso bastava. Não conseguia ter lembranças de seus pais. Não havia fotografias, nem lhe contavam histórias sobre eles o que, de certa, forma a intrigava, mas nunca quis saber o motivo. A vida seguiu seu rumo e, agora, já como uma jovem que divisava a possibilidade de constituir sua própria família, Olívia tinha deixado completamente para trás os mistérios que envolviam sua orfandade.
Rodrigo, como de costume, estacionou na porta da faculdade à espera da namorada, ansioso pelo desfecho que tinha programado para esse encontro. Estavam namorando já há algum tempo, e sentia que era chegada a hora de fazer a proposta.
Assim que Olívia entrou no carro e olhou para ele, um gosto amargo lhe veio à garganta e o coração começou a pulsar mais acelerado. “Calma, Olívia, calma”, pensou ela. “É só um uniforme militar, não faz sentido essa repulsa! Essa é a profissão dele, você sabia disso antes de começar o namoro, e nunca achou que seria um problema. Então por que tinha tanta rejeição a vê-lo fardado?”
Rodrigo a conduziu para o quarto e, entre beijos, fez a proposta formal de casamento. Nesse instante, Olívia paralisou. Olhos arregalados, foi se afastando em marcha ré, desvencilhando-se dos braços do rapaz.
— Loli, o que houve? Meu amor, o que está acontecendo com você?
— Não sei, não sei! Tudo escureceu e eu vi aquele flash me cegando, como acontece no sonho!
— Olívia, meu amor, vamos ter que procurar um terapeuta para entender de onde vem tudo isso. Amanhã mesmo marcamos, e não me dê desculpas.
No divã, depois de uma longa conversa sobre quem era, Olívia entrou no motivo maior da procura por ajuda.
Vieram as perguntas sobre a infância, e tudo o que ela contava era a partir da vida com os tios. Não conseguia ir mais para trás, para sua vida antes disso, com os pais biológicos. Atribuía essa falta de memória ao fato de ser ainda muito pequena quando eles morreram, mas a terapeuta logo identificou que ali deveria estar a chave de sua fobia, que se manifestava através dos pesadelos. A recomendação foi aplicar a técnica de Hipnose Regressiva. Olívia, mesmo temerosa, aceitou o tratamento.
No processo de imersão no passado, viu-se novamente no escuro e identificou a figura da menina em frente à porta aberta. Seguindo a condução das perguntas pela terapeuta, foi mais fundo e conseguiu ver, lá fora, um homem que batia com força em uma mulher. Olivia chorava de forma compulsiva no divã e se encolhia de pavor.
O ambiente continuava escuro e a terapeuta ia conduzindo a paciente pelas lembranças do que mais teria nesse cômodo. “Tava lá, em cima da mesinha perto da porta. “Não pode mexer nesse Olívia, é perigoso, é perigoso!” balbuciava. “A porta, ele está perto da porta”.
— Quem está perto da porta Olívia?
— Não sei, não consigo ver, a luz, a luz nos meus olhos...
De repente, em pânico, ela tampa os ouvidos. A voz que gritava se tornou mais forte. Era de uma mulher em desespero, correndo para tirar a arma da mão da criança.
Se viu sendo carregada nos braços dessa mulher para um carro que acabava de chegar. No caminho até o carro, o corpo tombado do agressor com um fio de sangue escorrendo pela farda. Olívia, olhos fechados, começou a gritar e se debater no divã: “Eu consegui, eu consegui, eu fiz ele parar, mãezinha! Mas por que esse homem está com o uniforme do papai?”
Como um clarão em meio à névoa, Olívia pode vislumbrar a revelação que faltava: a figura de sua mãe em frente à casa, entrando algemada em um carro de polícia.