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Entrelinhas

Quando Celeste estacionou o carro no acostamento, percebeu que estava sozinha.

Olhando para os lados, cogitou: “Será que devo, mesmo, ir até lá?”. Mas, depois de alguns necessários minutos, decidiu-se e caminhou para o veículo atravessado na pista. É bem verdade que atraiu olhares curiosos no caminho, afinal, o que pretendia aquela senhora, numa noite chuvosa, sozinha, andando pela estrada?


Por sorte tinha uma sombrinha no porta-luvas, mas o temporal engrossava e nesse trecho da serra não havia iluminação pública. Os faróis dos carros que passavam se espremendo e buzinando para desviar do acidente refletiam, na chuva, aqueles olhos esbugalhados de medo que a fizeram mudar o rumo da viagem e estacionar.


Foi se aproximando do acidente e logo sentiu nos pés os cacos de vidro do painel estraçalhado. No chão, estava uma motocicleta tombada e uma moça caída ao lado. Quem passava abria uma fresta da janela para espiar o acontecido. Era possível identificar todo tipo de pessoas: casais jovens, famílias, homens de meia-idade. Nenhum deles disposto a parar e ajudar, mesmo percebendo a situação de perigo que estava se descortinando.


Como um vespeiro, as motos que vinham subindo a serra se juntavam, em apoio ao colega envolvido no acidente. Alheios ao fato de que o rapaz tinha agido de forma irresponsável tentando ultrapassar na curva, o grupo cercou o veículo, insuflando o motoqueiro a prosseguir com sua selvageria. Tomado de fúria, o condutor da moto tinha mantido sua garupa deitada no chão enquanto, com o capacete, destruíra os vidros do painel e da janela da motorista aos gritos e ameaças.


Celeste conseguiu atravessar o tumulto e se aproximar da porta da motorista. Ela permanecia com as mãos ao volante, olhos arregalados, sem esboçar qualquer reação. No banco traseiro, adolescentes, que não deviam ter mais do que 12doze, 13treze anos de idade, choravam e tremiam sem saber o que fazer, cercadas cada vez mais pela legião de motociclistas prontos a dar continuidade à agressão.

Celeste tentou entabular uma conversa. Em choque, coberta de cacos de vidro, a moça só balbuciava palavras incompreensíveis.


A polícia chegou, interrompendo o que poderia ter sido um massacre. Rapidamente, conversando com o policial, Celeste ficou sabendo que a motorista teria que esperar ali até que tudo fosse resolvido: chamar o resgate, lavrar a ocorrência, remover os veículos envolvidos no acidente. Isso poderia demorar ainda umas boas horas.


Aproximou-se da moça, explicou a situação e perguntou o que poderia fazer para ajudá-la. Ainda com os olhos arregalados de medo e pregada ao banco, ela conseguiu falar:

— Por favor, tire as crianças daqui.

Num ímpeto, Celeste se ofereceu para continuar a viagem, levando as crianças para sua casa, até que o pai pudesse ir buscá-las.

As meninas imediatamente aceitaram, movidas não só pelo desejo de fuga dali o mais rápido possível, como pela falta de malícia própria da infância — por nem um minuto esboçaram receio de ir embora com uma pessoa totalmente estranha, para uma casa desconhecida.


A motorista conseguiu se acalmar um pouco e ligar para o marido, compartilhando sua decisão. Virou-se para Celeste, e, com a voz ainda trêmula, disse:

— Meu nome é Diva, meu marido se chama Horácio. Concordamos com seu oferecimento tão generoso. Por favor, me passe o seu número de telefone e o endereço para ele ir buscar as crianças.

Trocadas informações de contato, lá se foi Celeste com a dupla. As meninas se acomodaram, mas a tensão não melhorou. Celeste ofereceu uns chocolates que tinha no carro, água, e tentou iniciar um diálogo.


Tocou um celular, a menina ao seu lado se mexeu nervosamente no banco.

— Mãe, tá tudo bem, mãe. Sim, estamos indo, papai vai nos pegar lá. Mãe, não foi culpa da Diva! Ele é que se perdeu na curva e bateu no carro. Não é nada disso, mãe, por favor!

Foi interrompida por outra ligação.

— Oi, pai, está tudo bem, sim, a mãe está uma fera, você sabe como ela é… A Diva ficou sozinha lá na estrada, tá muito nervosa, coitada, com medo da reação da mamãe. E agora como vai ser? Não vou mais poder viajar com vocês?

Engolindo em seco, a voz tremulou e a garota desabou no choro novamente.


Celeste entrou em casa com as meninas, à espera do pai. Serviu uma fatia farta de torta de limão, abraçou as duas, enquanto pensava naquela figura fragilizada lá no meio da estrada, enfrentando a ira dos motoqueiros, a chuva, a polícia, mas, principalmente, o terror paralisante de ter que encarar uma guerra familiar.


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