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Não serei nem terás sido

  • Foto do escritor: Ana Helena Reis
    Ana Helena Reis
  • 16 de jun.
  • 2 min de leitura

“E quando eu tiver saído

Para fora do teu círculo

Tempo, tempo, tempo, tempo

Não serei nem terás sido.”

(Caetano Veloso)

 

Há dias em que um verso nos atravessa como se fosse um espelho. Ou uma fresta. Foi o que aconteceu comigo ao ouvir essa estrofe de Caetano. Fiquei ali, parada, mastigando as palavras como quem mastiga lembranças: "Não serei nem terás sido".

Pensei no tempo. E em como ele muda quando a gente muda. Não de forma brusca, como um rompimento, mas como quem troca de pele aos poucos — da idade adulta para a velhice, a passagem não tem hora marcada. Só se percebe quando, de repente, os ponteiros do relógio já não ditam mais tanta coisa assim.

Tenho a impressão de que saímos do círculo apertado onde o tempo era patrão. Agora, as horas não gritam. Elas escorrem, suaves, e às vezes até se escondem. Acordar e dormir não seguem mais um código de barras invisível. Passamos a ouvir mais o corpo, o sol entrando pela janela, o silêncio da casa. Há dias em que se almoça no café da manhã, e tudo bem.

Os dias já não obedecem à antiga divisão entre semana e fim de semana. As tarefas — ler, caminhar, cozinhar, pensar, amar — embaralham-se como peças de um jogo em que não é preciso vencer. Só viver.

A pressa virou uma lembrança distante. Não corremos mais para cumprir, e sim andamos para sentir. Pequenos gestos ganham um valor novo: um cheiro, uma xícara, uma pausa. Coisas miúdas que talvez sempre estivessem ali, mas só agora conseguimos ver.

É curioso: quanto mais conscientes nos tornamos da finitude, menos presos estamos à contagem. Paradoxalmente, o tempo se torna mais profundo quando paramos de medi-lo. Como se, finalmente, estivéssemos fora do seu círculo — e, por isso mesmo, dentro dele de outro jeito.

Caetano tinha razão. Há um momento em que o tempo já não é mais algo que se possui. Nem que nos possui.

Tempo, tempo, tempo, tempo... Não serei nem terás sido.

2 comentários

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16 de jun.

Amei o texto " Não serei nem terás sido", a escrita maravilhosa, simples, poético, profundo e belo. Dá pra gente ler várias vezes e escrever com a alma leve e solta seguindo este texto fascinante.


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Convidado:
16 de jun.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

amei. Veio muito de encontro a mim! parabéns

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