Olhei para o bolo de chocolate com aquela cobertura de brigadeiro escorrendo pelos cantos. Peguei um prato e já ia me servindo, quando fui assaltada por um pensamento aterrorizante – esse é o último pedaço. Uma sensação de finitude me invadiu; como liquidar essa fatia que ainda pode durar até amanhã? Não, não posso fazer isso, vou dividir para que ela dure mais. E, assim, fui me satisfazendo com uma terça parte da delícia, até que não restasse nada além de migalhas.
Depois do último pedaço, pensei com o melado que ainda restava na boca: será que isso é sinal de demência? Gula? Ou, quem sabe, avareza?
Demência, ao que tudo indica pelo próprio fato de estar aqui me questionando, certamente não é. Avareza? Não, nunca fui daquelas que reutilizam cinquenta vezes o mesmo envelope de papel. Muito menos do tipo que compra uma grande quantidade de um produto em promoção no final da validade sem a menor precisão, pelo simples prazer de economizar.
Muito menos gula, pois não me atiro nem sonho com doces, muito menos salivo de alegria frente a uma confeitaria. Mas deve haver uma explicação para não querer encarar o final dessa fatia de bolo, então tentei ir mais a fundo. Se não é por avareza, por gula, ou porque estou entrando num processo de demência senil, o que me moveu a um comportamento tão esdrúxulo?
Passei em revista minhas atitudes em relação ao desapego, com rigorosa autocrítica. Não, nunca tive problemas em me descartar de coisas como roupas, sapatos, móveis, ou mesmo mudar de casa. Então por que motivo esse apego a um simples bolo de chocolate?
Depois de vasculhar meus sentimentos, cheguei à conclusão de que comer de uma só vez só a última fatia do bolo de chocolate teve, para mim, um significado emocional de deixar de sentir aquele prazer. Tudo bem que é muito simples fazer ou comprar outro bolo para repor, mas o risco é de que o próximo não esteja tão gostoso como esse.
Isso pode ser estendido não só para o prazer sensorial, mas para muitos prazeres emocionais, como o último dia de uma viagem, o último capítulo de um seriado, a última festa da faculdade, a última gravidez, só para citar alguns deles. Creio que me apego a esse último momento pela consciência de que ele significa a ruptura a partir da qual nada será mais o mesmo.
Muitas teorias foram escritas a esse respeito por psicólogos, analistas do comportamento humano, e até por escritores como o Tolteca Miguel Ruiz, no livro “Os cinco níveis de apego”.
Em uma das passagens do livro ele coloca: [...] “Sei que estabeleci um apego a algo exterior quando o medo da mudança toma conta de mim”.
A antevisão de um final, seja da vida terrena em si, ou de qualquer coisa a que nos apegamos pode ser angustiante. Aprender a lidar com isso é uma sabedoria que tenho que adquirir, portanto, daqui para frente, seja do bolo ou da vida vou comer minha fatia de uma só vez.
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