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o voo de Perseu

Italo Calvino proferiu, em 1985, cinco conferências na Charles Eliot Norton Poetry Lectures, da Universidade de Harvard, com o tema: Seis propostas para o próximo milênio. Cada uma delas tratando de um tema relacionado à literatura: “Leveza", "Rapidez", "Exatidão", "Visibilidade" e "Multiplicidade”. A sexta proposta, que seria “Consistência”, não chegou a ser proferida em razão de seu súbito falecimento.


Em contato com o livro que reúne as conferências desse autor, me impressionou a relação que ele faz entre suas propostas literárias e a visão de mundo que elas carregam. Isso me levou a escrever sobre uma delas, que para mim fez todo o sentido - a Leveza.


Calvino aborda esse tema com a seguinte reflexão:

Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que, à maneira de Perseu, eu devia voar para outro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle. As imagens de leveza que busco não devem, em contato com a realidade presente e futura, dissolver-se como sonhos...”


Não querendo, discursar sobre a obra do autor, mesmo porque não tenho bagagem literária para isso, penso que o limiar entre a fuga para o sonho e a vivência da leveza frente à realidade é difícil de identificar. Na maioria das vezes o peso da realidade é tal que a fuga para o irreal é o caminho menos custoso, menos dolorido. Introduzir a leveza na forma de encarar a vida real exige uma mudança de olhar sobre essa realidade que, muitas vezes, não temos disposição ou coragem para empreender.


Mas o que seria, na prática, esse estado de leveza pregado por Calvino? O autor se serve de inúmeros exemplos a partir da mitologia e do pensamento de grandes, filósofos e escritores para desenvolver a ideia de que leveza não seria uma fuga para o etéreo, o imaginário, mas sim o que ele identifica como a gravidade sem peso. Para que seja possível essa, a princípio, inconsistência, explica que a chave está justamente na relação muito particular entre melancolia e humor.


Segundo ele, da mesma forma que a melancolia é a tristeza que se tornou leve, o humor é o cômico que perdeu peso corpóreo. Assim, de uma forma lírica, esse magnífico escritor, que completaria 100 anos em 2023, oferece um caminho para o desafio diário que enfrentamos.


Ao tentar vivenciar a leveza frente ao peso da realidade, com as asas de Perseu há que ser ter disposição para contemplar o próprio drama num voo exterior, e dissolvê-lo em melancólica ironia.


Quem se habilita?

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