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Palavras caleidoscópicas

Sonhei que era um caleidoscópio. Mas eu era diferente dos comuns, pois tinha o poder de transformar fragmentos de palavras em outros textos. Além disso, tinha adquirido um recurso a mais, fruto da tecnologia moderna: escaneava os escritos e, a cada movimento, fazia novas combinações com aquelas letras.


No meu tubo foram aparecendo frases como: Queria só beber. Gira, gira, letras embaralhadas e, de repente, a frase se transforma em: Bebê que sorria. Separei as letras, contei, e... Fantástico! Sou o mago da escrita.


No mundo dos sonhos, fui chamado a trabalhar em um periódico como revisor. Delirei de entusiasmo pensando na revolução que, com meus poderes caleidoscópicos, poderia implantar na redação.

Fui logo convocado para a seção de notícias do cotidiano. Meus espelhos inclinados rodopiaram de alegria ao escanear as manchetes. Transformar aquelas notícias tão desalentadoras em algo mais positivo ou interessante, mudar o tom sensacionalista das manchetes, seria uma grande contribuição à sociedade.


Caleidoscopicamente me preparei para a missão. Não contava, porém, com as peças que o inconsciente prega: Alguém com chifres vermelhos e espírito de porco entrava no meio do sonho e me sussurrava, com sua voz sibilante: vamos barbarizar!


Iniciei por aquela notícia que, lógico, tinha sido alvo de minhas gargalhadas no dia anterior portanto deveria estar ali, presa na minha lembrança humorística recente:

Homem casado, é morto por moto de menina Z..., meio vesga, que morou oito meses presa no sótão pelo tio.


Notícia engraçada, mas mal escrita e daquelas que aparecem diariamente nos tabloides. Trabalho árduo pela frente. Meu caleidoscópio rodopiou, rodopiou e, fragmentou todo o texto. Na primeira rodada, saiu-se com essa:

Preso homem amoroso que é investigado por estelionato e, ao mesmo tempo, namorou dezoito moças...


Criativa, mas ainda não tinha uma pegada mais inusitada, que o espírito irreverente do meu diabinho me estimulava – como revisor caleidoscópico, a missão era bagunçar tudo, dar uma reviravolta no sentido do texto, usando as mesmas letras.


Outra movimentada dos globos oculares, e a frase passou por um novo processo de fragmentação total das letras. A sensação foi de estar rodeado por espelhos coloridos se juntando e repartindo rapidamente, até formar uma nova composição.

Homem que namorou dezoito moças ao mesmo tempo é investigado e preso por estelionato amoroso...


De tanto rir acabei acordando. Corri para colocar num papel os dois textos, de forma a não me esquecer do sonho, e cai desmaiado na cama novamente.


No dia seguinte, ainda um pouco sonado, busquei a folha com as minhas frases caleidoscópicas e fui conferir. Separei e reorganizei as letras, para ver se o que tinha anotado era somente um delírio, ou o meu sonho caleidoscópico tinha realmente produzido algo, no mínimo, surreal.

Fui comparando as duas frases e eliminando letra a letra.


H o m e m c a s a d o é m o r t o p o r m o t o d e m e n i n a Z..., m e i o v e s g a, q u e m o r o u o i t o m e s e s p r e s a n o s ó t ã o p e l o t i o.


H o m e m q u e n a m o r o u d e z o i t o m o ç a s a o m ê s m o t e m p o é i n v e s t i g a d o e p r e s o p o r e s t e l i o n a t o a m o r o s o...


Aí entendi por que motivo levantei tão exausto!!


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