Domingo festivo, a maioria da família em São Paulo, o que era raro, pois já há alguns anos os sobrinhos moravam fora do Brasil. Tia Cotinha resolveu, então, reviver uma prática antiga sua, a de convidar todos eles para o almoço.
Tarefa fácil para quem sempre recebeu com mesa farta, e sabia os segredos da culinária tradicional. Com um belo caderno de receitas à mão, separado por categorias como aves, carnes, peixes, massas, etc. decidia quais seriam as entradas, primeiro prato e prato principal, seguidos das frutas e doces, mantendo um certo suspense sobre qual o cardápio escolhido, que era sua pitada de humor.
As receitas envolviam uma variedade de ingredientes, não podendo faltar a farinha de trigo, o leite, a manteiga, os ovos; muito chocolate em pó e açúcar, creme de leite, óleo para fritar. As combinações variavam entre as massas com carne de porco, os peixes com lulas enfarinhadas, ou as aves com farofas e bolinhos fritos, uma culinária muito saborosa que se repetia ano a ano. A aposta da família era, portanto, qual dos já conhecidos cardápios ela escolheria.
Tradicional também era o convite. Cotinha fazia uma pergunta clássica: “Tem alguma restrição ou intolerância alimentar?” o que, na verdade, era uma brincadeira dela, pois sabia que a resposta seria: “Nada de importante, Tia Cotinha.”
Dessa vez, para sua surpresa, as respostas foram outras. Tico e Maria relataram uma restrição à lactose. Eliminados, portanto, o leite, creme de leite, queijos, iogurtes e leite condensado.
Já Carminha contou que um dos garotos está com intolerância a Glúten, então a família aboliu a farinha de trigo de suas receitas.
Mais um telefonema, outra notícia inesperada. Ricardo e Marlene, desde que foram morar fora optaram pela alimentação vegetariana. Deixaram de consumir qualquer tipo de carne, seja de frango, peixe, carne vermelha, frutos do mar e outras.
Restou o sobrinho solteiro, que tinha um probleminha de peso, mas mantinha um bom controle. José, porém, contou que está pré-diabético, evitando frituras, carboidratos, açúcar.
Os relatos caíram como uma bomba. Cotinha foi para a cozinha e sentou-se para não cair no chão. Cruzou os braços em cima da mesa e apoiou a cabeça, macambuzia. Resmungou que tudo isso não passava de uma mania da nova geração, que o mundo andava de pernas para o ar. “Como assim agora ter que mudar o cardápio que já tenho pronto há anos? Como conciliar todas essas restrições?” Pensou em desistir do almoço.
Mas, como não era pessoa de jogar a pano de prato assim tão fácil, começou a rever suas receitas à procura de uma solução.
O cardápio não podia ter nenhum tipo de carne. Nada com leite nem derivados. Nenhuma fritura. Sem carboidratos. Farinha de trigo ou outras que contém glúten estão proibidas. Sem açúcar.
Foi rascunhando opções e fazendo um checklist dos ingredientes para ver se eram aprovados. O resultado foi desanimador. Já tinha repassado quase todo o livro, sem conseguir montar um menu que pudesse servir a todos.
De repente jogou fora as receitas e, mesmo a contragosto, foi para a TV buscar um programa de culinária que alguém havia recomendado. Procura daqui, procura dali, achou opções que nunca tinha imaginado. Passou em revista as tropas: todas as receitas sem trigo, sem leite, sem carnes, sem açúcar, sem frituras.
Encheu o peito de orgulho. Tinha conseguido uma proeza que os sobrinhos nem iriam acreditar.
No dia seguinte, exultante, abriu a porta da sala de jantar e apresentou à família, em alto e bom som, os pratos que seriam servidos.
— Bem... queridos sobrinhos. Fiquei bastante comovida com os relatos de vocês, então procurei atender a todas as restrições que, para minha surpresa, vocês desenvolveram nesse período em que não estivemos juntos. Preparei um cardápio especial para recebê-los, uma verdadeira revolução culinária! De entrada, teremos Shitake assado no coco. Como prato principal, um cuscuz de legumes, feito com farinha de milho e uma moqueca de banana da terra, acompanhados de salada de folhas com maçã e uvas passas. E, para a sobremesa, Brownie de castanha baru.
Todos se entreolharam, envergonhados. Tico tomou a palavra:
— Tia, mas... você acreditou mesmo no que te falamos? Era uma brincadeira que combinamos fazer, pois durante muitos anos você fez a mesma pergunta e nós a mesma resposta. Mas nunca imaginamos que iria levar a sério!