Um dia desses, lendo uma crônica do Vinicius de Morais, “O estranho ofício de escrever”, senti um alívio maior do que aquele que sentia, nos meus anos de infância em colégio de freiras, ao sair do confessionário. Minha consciência, abalada pelos pecados veniais e mortais que vinha cometendo na escrita, se encheu de uma morna complacência. Afinal, se até Vinicius cometia seus deslizes, por que não eu?
Escrever, para mim, envolve uma dor de parto, aguda e profunda. O texto vai saindo a cada contração e, por vezes, necessita a ajuda de fórceps para vir ao mundo. Sempre acreditei que, como escritora, não era uma boa parideira.
Lia textos dos grandes cronistas e me encantava com a fluidez com que as palavras iam bailando nas páginas, ora para compor significados mais flexíveis como se estivessem em Plié, ora em Rond de jambé revirando o rumo da narrativa e, muitas vezes, finalizados com um surpreendente Grand Jeté. Procurava me consolar, pois não tinha exercitado a escrita em sapatilha de ponta, fundamental para fazer parte de um corpo de baile como o dos meus notáveis escritores.
Na tentativa de entender como se dava o seu processo criativo, que pistas eu poderia tirar da rotina literária dos meus admirados, achei por bem me enfronhar na vida deles. Fui atrás de depoimentos que fizeram sobre a sua rotina de escrita, hábitos que facilitavam a preparação da mente para a criação. Percebi uma certa regularidade em alguns aspectos: exercício físico diário, normalmente antes de começar a trabalhar; escrever pela manhã e determinar uma meta diária de produção; anotar tudo o que, em qualquer momento do dia, pudesse gerar um insight para um novo texto, para a caracterização de um personagem, para embasar o conflito central de uma narrativa.
Adotei as caminhadas matutinas, o caderninho de anotações, mas devo dizer que meu relógio criativo privilegia a noite – me dei essa permissão, mesmo porque nada disso me garantiria o sucesso, como não garantiu mesmo. Continuei tendo crises criativas, dias em que sinto um oco total de ideias para novos textos.
E foi aí que me deparei com a confissão do Vinicius. Ele, Rubem Braga e Paulo Mendes Campos escreviam para diferentes periódicos e Rubem, numa hora de aperto, perdeu a cerimônia e pediu a Vinicius uma crônica emprestada. Veio “A Sopa”. Reescreveu com algumas mudanças de detalhes e publicou. Tempos depois, Vinícius, também sem um texto novo para o dia seguinte, voltou ao Rubem pedindo uma crônica usada, daquelas que ele não precisava mais... e recebeu de volta “A Sopa”. Vinícius protestou – logo essa? Mas como ele mesmo relatou, não era pobre soberbo, então aceitou. Fez alguns remendos e publicou.
Essa foi a redenção total dos meus pequenos delitos inconfessos ao repaginar crônicas antigas, quando falta inspiração... Se até os grandes, por que não eu?
Aí me veio a lembrança da Ciranda da Bailarina, de Chico e Edu Lobo:
“[...] Confessando bem/ Todo mundo faz pecado/ Logo assim que a missa termina [...] E tem piriri, tem lombriga, tem ameba
Só a bailarina que não tem”
Que show de crônica! Representa muito bem a angústia comum a todos os escritores.