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Silêncio

Dia 01/03/2019 Vara criminal de instrução. A acusada, uma jovem colombiana, é conduzida a uma cadeira em frente ao defensor público designado.

— Seu nome completo?

— Maria Gomez.

— Endereço?

— Moro com minha patroa, a Sra.. Consuelo.

— Maria, Meu nome é Paulo Sampaio e fui designado para defende-la. Você está sendo acusada de morte com agravante de parentesco. Sabe o que isso significa?

Silêncio. Maria, cabisbaixa, olhar perdido. As mãos se contorcem, mas ela não profere uma única palavra.

O defensor muda de posição na cadeira, espera uns minutos e então volta à carga:

— Significa que você pode ficar muitos anos na cadeia. Para que eu possa te defender preciso que você me conte o que aconteceu naquela noite.

Silêncio. Com os olhos fundos e sem brilho, ela olha para o advogado. O rosto meio caído de lado, a boca contorcida e ela permanece calada.

O advogado se ausenta por alguns segundos para comentar o caso com a agente penitenciária:

— Acho que ela está ainda em grande choque, não tem condições de depor. Sugiro uma avaliação psicológica antes do julgamento.


Dia 18/03/2019 O Juiz entra na sala e dá início aos trabalhos. O processo envolve a morte de um bebê recém-nascido, no banheiro da residência da Sra. Consuelo.

Tomam seus lugares a promotoria, a defensoria pública e o juiz. Nas galerias, curiosos e estudantes de direito criminal que estão acompanhando esse caso, visto a repercussão que teve na mídia.

Com a palavra a promotoria, que chama os patrões de Maria para depor, e faz o mesmo rol de perguntas para cada um de uma vez.

— Maria está sendo acusada de ter dado à luz no banheiro da sua casa e ter matado o filho logo após o parto, por asfixia. Gostaria então que me relatasse como conheceu a acusada; como era o comportamento dessa moça; como foi a gravidez de seu primeiro filho; o que sabia a respeito dessa segunda gravidez. E, na sequência, foi fazendo as perguntas necessárias para montar o ambiente que completaria a argumentação para a condenação da ré.

Tanto o marido como a esposa relataram que a moça entrou para trabalhar e morar na casa por indicação de uma amiga deles; que era uma moça semianalfabeta, sem família; que dependia totalmente dos patrões e da vida que eles lhe proporcionaram na casa; que ficou grávida de um entregador de pizza do bairro e nem percebeu; que foi a patroa que notou, levou para fazer os exames, acompanhou o parto e acolheu o filho, deixando que ela continuasse a trabalhar e morar na casa; que a criança estava sendo cuidada por eles com todo o carinho; que nunca suspeitaram dessa segunda gravidez; que depois do acontecido ficaram chocados; que ela representava um perigo para a sociedade e até para o primeiro filho, que estava provisoriamente sob sua guarda; que a moça se mostrou um monstro, coisa que nunca imaginaram.


Em seguida veio o depoimento do médico que atendeu Maria, assim que os patrões a encontraram a criança morta na banheira e ela se esvaindo em sangue, desmaiada no chão. O laudo foi de morte por asfixia; a criança nasceu viva; estava enrolada em panos. Declarou que quando socorreu a mãe, ela estava desmaiada e que depois de voltar a si não conseguiu se lembrar de nada quando perguntada.


Diante desse quadro, o juiz solicita que a acusada se pronuncie antes da sentença. Maria, se levanta e, para espanto da defensoria, começa a falar, olhando para o chão:

— Peço perdão à Sra. Consuelo pelo que aconteceu; ela é uma pessoa boa; sempre foi boa para o meu filho; minha vida não importa; quero só pedir que ele seja criado pela Sra. Consuelo.


A defesa, mesmo ciente de que a condenação era inevitável, diante daquela figura encolhida e desamparada a seu lado, pede para que, antes da sentença, fosse ouvida a psicóloga que avaliou a acusada. O julgamento é adiado para que ela fosse citada.


Dia 25/03/2019 A defensoria pede que a psicóloga jurídica seja ouvida. Interrogada pela defensoria, ela declarou o seguinte: que Maria sofreu abusos na infância; que tem uma leve deficiência mental; que não teve mãe, foi criada pelo pai; que com 15 anos foi vendida pelo pai a uma mulher, que a trouxe para o Brasil; que veio para trabalhar na casa da Sra. Consuelo, em troca de moradia e comida; que não sabe como ficou grávida do primeiro filho; que a patroa havia deixado claro que não aceitaria uma segunda gravidez; que fazia todo o trabalho da casa; que a Sra. Consuelo é que levava e buscava seu filho na escola, era muito dedicada a ele; que ficava sozinha em casa, pois os patrões trabalhavam fora; que não recebia visitas; que a única pessoa que entrava na casa durante o dia era o filho da Sra. Consuelo, que vinha trazer as roupas dele para ela lavar; que não respondeu quem era o pai desse bebê, nem do primeiro filho;


Concluiu o depoimento argumentando que Maria sofria de despersonalização, um transtorno que torna a pessoa incapaz de ter emoções, como mecanismo de defesa contra traumas; que esse distúrbio pode acarretar surtos e transformar a experiência da pessoa em algo irreal; que Maria vivia em cárcere privado; que temia ser posta para fora da casa se tivesse esse filho; e finaliza afirmando que havia uma forte indicação de estupro.


Esse texto foi inspirado no filme Crimes de Família, do argentino Sebastián Schindel, baseado em uma história real.


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