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O Beco

  • Foto do escritor: Ana Helena Reis
    Ana Helena Reis
  • 9 de set.
  • 2 min de leitura
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Dia frio, chuvoso, cair da tarde. Penido se preparava para voltar para casa depois de um expediente que lhe deixara uma tremenda enxaqueca. O contato com o público o estressava — “infelizes”, como gostava de chamar os que o procuravam. Na maioria das vezes, ignorava suas queixas e rabiscava um “indeferido” na petição.

A têmpora latejava. Engoliu uma dose dupla de comprimidos, fechou os olhos por alguns segundos e esperou o efeito.

O barulho dos pingos no vidro aumentou, cada gota como um martelo contra os ouvidos. Uma névoa foi lhe turvando a visão. Lembranças, até então afogadas, voltaram em ondas sujas.

***

De paletó encharcado e galochas pesadas, só lhe restava enfrentar o caminho até o ponto de ônibus. A noite caía deserta, sem luar. Caminhava atento ao chão, as poças cobrindo os pés, a água escorrendo pelos paralelepípedos tortos. A cabeça pesava, e um desconforto ácido começou a lhe revirar o estômago.

Chegou à entrada da viela estreita que levava à avenida. Sempre tivera maus pressentimentos em relação àquele atalho. Agora, ao encarar a descida íngreme, sentiu as pernas vacilar.

Relâmpagos riscavam o céu, refletindo nas paredes molhadas. As manchas de luz formavam figuras fantasmagóricas, que se contorciam e ganhavam corpo a cada rajada de vento. Penido estacou. Não eram reflexos — eram rostos. Rostos conhecidos.

— “Indeferido…” — sussurrou um, cuspindo a palavra.

— “Você não leu minha petição!” — gritou outro.

— “Injustiça!” — ecoou um coro distante.

As criaturas se desprenderam das paredes e começaram a cercá-lo. Olhos em brasa, bocas peçonhentas, corpos disformes. Cada golpe que recebia na cabeça vinha acompanhado de uma acusação: descaso, desrespeito, ilegalidade. Penido girava em pânico dentro daquele círculo de fantasmas vingativos. Não havia para onde fugir.

***

Encharcado de suor, sentiu uma mão lhe sacudir os ombros.

— Penido, que está fazendo aí, cochilando? A fila atrás do balcão já dobrou o corredor!

Abriu os olhos. A pilha de requerimentos continuava intacta. Penido pigarreou, pegou a caneta e rabiscou a primeira folha.

— Indeferido.

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