Quem conta um conto
- Ana Helena Reis
- 9 de set.
- 3 min de leitura

Dia chuvoso. O investigador aposentado Lupércio ajeitou a capa puída e saiu em direção ao ponto de ônibus. “Nos meus tempos de polícia”, murmurava sempre que queria dar importância ao próprio passo. Virou a esquina e, mesmo de longe, avistou um volume coberto com plástico preto. Estacou.
Apertou os olhos, fez concha com as mãos na testa e concluiu, satisfeito:
— Tá lá um corpo estendido no chão. Bem que eu disse que hoje ia dar trabalho.
Aproximou-se com ar solene, as mãos nos bolsos, e logo se juntou aos curiosos que formavam roda em volta do embrulho.
— Amigo, viu quando aconteceu? — perguntou a um rapaz de mochila.
— Eu não. Só vi o pessoal se juntando. Mas aquela senhora ali mora em frente, talvez saiba.
Lupércio ajeitou o chapéu e foi até ela.
— Boa tarde, minha senhora. A vizinha é do falecido?
— Que falecido, homem? Eu só ouvi um estouro. Quando cheguei à janela, já tinha esse plástico aí.
Outro se intrometeu, um entregador ainda com a mochila de isopor nas costas:
— Eu tava subindo a rua e ouvi uns gritos de socorro, mas não parei. Já estava atrasado pra outra entrega.
Lupércio anotava mentalmente. “Nos meus tempos de polícia, um grito desses já me punha em alerta”, pensou, orgulhoso.
Uma senhora coxa, conhecida de todos, arrastou-se até a roda:
— Tragédia! Cheguei agora, mas vi uma coisa estranha. Logo depois do barulho, a moradora do 81 saiu correndo, como alma penada.
— Isso é mesmo suspeito — cochichou o dono da venda. — Antes do estouro, ela esteve aqui pedindo um facão emprestado. Disse que o marido estava nervoso.
A senhora da perna coxa fez biquinho, soltou a língua:
— Nervoso? Não é segredo que ela costura pra fora…
O burburinho aumentou. Vozes se sobrepunham: “Eu sabia!”, “Todo dia ela desce na rua de baixo!”, “Com certeza é caso com aquele dono de restaurante!”.
Lupércio ergueu a mão, impondo silêncio.
— Senhores, permitam. Conforme as provas colhidas, trata-se de um crime passional. O marido descobriu a traição, houve luta, a mulher se apoderou do facão, esfaqueou o homem e, para encobrir o ato, lançou o corpo pela janela da cozinha do oitavo andar. Em seguida, fugiu. Recomendação: polícia deve ser chamada imediatamente.
Os curiosos assentiram, impressionados.
Chegaram os bombeiros, depois a viatura. Diante do plástico, os policiais perguntaram a questão que a ninguém ocorrera:
— Quem encontrou o corpo e cobriu com esse plástico?
Um silêncio pesado caiu. Lupércio pigarreou, coçou a cabeça:
— Não sei… nos meus tempos de polícia, eu nunca esquecia de perguntar isso.
Nesse instante, surgiu a vizinha do 81, esbaforida. Foi cercada de imediato.
— Me desculpem! — disse, ofegante. — Eu mesma pus o plástico, mas estava tão atrapalhada que corri para o restaurante pedir ajuda.
Todos recuaram. Ela, com gesto teatral, levantou a lona preta.
— Vejam só que desperdício! Deixar um leitão tão bonito despencar com caçarola e tudo… Eu avisei que meu marido não dava conta de segurar, mesmo com o facão emprestado. Teimou em cortar em cima da bancada, o bicho escorregou e lá foi ele pela janela!
Um cheiro de gordura assada se espalhou, denunciando o engano coletivo. A mulher completou, triunfante:
— Ainda bem que já encomendei outro no restaurante. Hoje vamos ter visitas para o almoço.
Os policiais se entreolharam. Lupércio ajeitou a capa, constrangido:
— Nos meus tempos de polícia… isso não acontecia.
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