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O crime da rolha


Nat e Lina se preparavam para a grande celebração. Tinham decidido passar o final de ano juntos, longe das respectivas famílias, visto que queriam manter o relacionamento ainda longe dos holofotes. Pesquisaram aqui e ali em busca de um lugar romântico e isolado, e acabaram encontrando um chalé nas montanhas, com toda a privacidade esperada.


O chalé era bem montado, sem luxo, mas cuidadosamente limpo, recém pintado de um amarelo queimado nas paredes e forro branco. Uma decoração rústico-chique que incluía móveis de estilo em madeira, mantas coloridas e deliciosos travesseiros de plumas distribuídos negligentemente sobe uma aconchegante cama de dossel.  Grandes portas- veneziana permitiam avistar as montanhas ao longe, e admirar o pôr do sol no horizonte, acompanhados de uma bebida e dos aperitivos que haviam sido escolhidos a dedo para a ocasião.


A hospedeira, que morava em um outro chalé na mesma propriedade, havia avisado que estaria viajando durante esse período, e como a proposta era de uma locação sem serviço de quarto, os visitantes teriam que se responsabilizar pela manutenção do local durante esses dias, incluindo a alimentação. Para isso, o chalé oferecia uma pequena cozinha aberta para a sala, equipada com todo o material necessário para preparar as refeições.


Animados, Nat e Lina logo se instalaram, abasteceram a geladeira com o que tinham trazido para a ceia do dia seguinte e já deixaram de fora o que serviriam no jantar daquela véspera festiva. Bebidas devidamente geladas, tudo organizado, foram dar uma volta para conhecer os arredores antes que anoitecesse.


Ao retornar, começaram os preparativos para o jantar. Nat ficou encarregado de abrir o vinho tinto, que deveria acompanhar a massa de bacalhau que Lina colocara no forno. Procura daqui procura dali, e nada de encontrar um saca rolhas. Como já se sabia meio distraído, achou melhor apelar para a namorada: Meu bem, quer me ajudar aqui um minuto para procurar o saca rolhas?


Rindo da dificuldade do namorado em achar uma coisa que deveria estar embaixo de seu nariz, lá se foi ela ajudar. Juntos vasculharam primeiro todos os recantos e becos da pequena cozinha – nada. Passaram então para lugares menos prováveis como o guarda-roupas, as mesas de cabeceira, as gavetas da escrivaninha, o baú onde estavam guardadas as redes da varanda, e acabaram no gabinete do banheiro – nem sombras desse objeto imprescindível para o sucesso do jantar.


Resignados, concluíram que, apesar de existirem os copos de vinho, não havia com que abrir as garrafas – possivelmente a dona do chalé imaginava que todos os hóspedes traziam bebidas com tampas de rosquear.

O vinho, em cima da pia, esperava uma solução criativa; e foi assim que decidiram abri-lo no muque. Munidos de uma faca de ponta afiada, o casal empreendeu sua batalha, dividindo as posições: Lina segurava a garrafa, Nat perfurava a rolha. A tarefa era árdua, pois a rolha era profunda, e cada investida da faca conseguia aprofundar o buraco de forma quase imperceptível. A garrafa rodava nas mãos de Lina, revoltada com essa violência à sua integridade. Depois de muita luta, finalmente a rolha, vencida, se afogou para dentro da garrafa, não sem antes cuspir algumas gotas, para o susto do triunfante casal.


Limparam os pingos que viram na pia e lá se foram degustar o vinho, servido com o anteparo de uma peneirinha para se livrar dos resquícios de rolha. Comemoraram o sucesso em meio a muitas risadas e o resto da noite romântica transcorreu sem outros sobressaltos.


Dia seguinte, cesta de pães colocada no balcão da cozinha americana, Nat se sentou na banqueta, serviu-se de café enquanto observava o ambiente, lembrando com um sorriso a aventura da véspera. O olhar passou da pia para o teto da cozinha. Sentiu borboletas passeando na boca do estômago, repousou a xícara de café e berrou, em desespero: Nat, corre aqui, uma tragédia!


 O teto branco da cozinha, todo salpicado de manchas arroxeadas, denunciava a vingança da rolha.

Estupefatos, os dois se entreolharam. Nat tomou a palavra: Temos que limpar essas manchas agora mesmo, amor, não podemos devolver o chalé assim!


Fizeram um levantamento do que tinham de material de limpeza que pudesse ser usado para o combate e foram à procura de uma escada que pudesse alcançar o teto. Por sorte existia uma do tamanho suficiente, que rapidamente foi colocada no local do ataque – o problema era a posição, pois o corpo tinha que se contorcer para trás, com um braço levantado para alcançar as manchas e o outro apoiado em alguma coisa que desse equilíbrio.


Lina, mais jeitosa, foi eleita para a escada e Nat ofereceu o topo da cabeça como suporte para que ela se apoiasse com a outra mão. A operação começou com Veja, aquele que limpa qualquer coisa – as manchas sorriram e se expandiram, graciosas. Plano B, sabão de coco – sugado com visível prazer pelas inimigas. Plano C, álcool – em delírio as manchas, bêbadas, cresceram de tamanho.


Lina, já com câimbras, desceu de seu posto para uma reunião estratégica com a tropa. As armas utilizadas não estavam fazendo efeito, e eles não tinham mais nenhuma bala de canhão no seu armamento de limpeza que pudesse ser usado.


Tentando ganhar tempo para pensar em outra solução, ela resolveu tirar o esmalte das unhas, que tinham se danificado com o uso de tantos produtos abrasivos. Como sempre em suas viagens, havia levado uma caixinha de pads com removedor de esmalte, e, enquanto fazia o serviço, pensou – já que está tudo perdido mesmo, por que não tentar uma tática de guerrilha? Pode ser uma ideia suicida, causando baixas inclusive nas unhas, mas...

Escada acima, feito o devido sinal da cruz ela empreendeu sua última investida, na esperança de aniquilar de vez o inimigo. E não é que funcionou? As manchas foram capitulando, uma a uma, pad a pad, até que nada mais restasse além de um leve tom que poderia, tranquilamente, ser atribuído a um pouco de mofo, natural em um chalé nas montanhas.


Ainda bem que, para essa noite de ano novo, tinham levado um espumante...

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