Foi em um desses sábados comuns, ensolarados, céu limpo, mas com tempo muito frio, que parti para a minha usual caminhada por São Paulo. Ao final do passeio, como de costume, sentei-me para um café em uma confeitaria. Ao lado uma farmácia, coisa, aliás, bem comum aqui na cidade.
Enquanto saboreava meu café longo com um acompanhamento, observava uma garota, que não devia ter mais do que vinte anos de idade, sentada no chão, na porta da farmácia. Tinha a seu lado um garoto de uns cinco anos, e no colo um bebê, que ela alimentava com um líquido rosa na mamadeira. Me chamou a atenção um carrinho que ela tinha encostado ali, com alguns pertences, pois estava até em bom estado.
Durante todo o tempo em que fiquei ali, saboreando o café quente, ela não abriu a boca, não se mexeu, não abordou ninguém. Só levantava os olhos para cada pessoa que entrava, e eram muitas. Era uma presença invisível ali parada, com aquelas duas crianças. O garotinho, de vez em quando dava uma volta e se sentava novamente.
Esperei pagar a conta e me dirigi à farmácia, me aproximando da garota. Vestida com uma roupa muito leve para aquele dia de inverno, agasalhava o pequeno com seus braços. Era possível notar que era um bebê bem nutrido, corado, assim como o garotinho que, apesar de bem magro, tinha uma aparência saudável.
Ela sorriu ao me ver se aproximar. Dentes um pouco estragados, olhar vivo, nenhum traço de alcoolismo ou drogas. Logo perguntei:
— Você quer alguma coisa da farmácia?
— A senhora podia me comprar uma lata de leite em pó? Se der, estou precisando de fraldas também.
Olhei para aquela menina ali no chão, com dois filhos, pouco agasalhada para esse início de tarde que prometia baixas temperaturas em poucas horas, e perguntei: — Onde você mora? — Não moro na rua não, moça, eu tenho uma casa lá do outro lado do rio. Eu venho aqui só aos sábados, para ver se consigo alguma ajuda… não está dando pra comprar nada pras crianças. — Então, depois que eu te entregar as coisas vá logo para casa, está esfriando muito. Olhei para o garoto de olhar vivo ao seu lado que já se encolhia de frio. — E para você, quer alguma coisa? Ele se levantou num salto: ¬— Posso escolher um chocolate? —Sim, lógico, vem comigo.
No caixa da farmácia havia um bom sortimento de barras de chocolate. Imaginei que a escolha dele recairia para a maior barra que estivesse exposta, mas não. Ele quis um Kinder ovo! Até tentei oferecer outras coisas, mas ele segurou aquele Kinder com uma alegria indescritível.
Compras entregues segui meu rumo, ainda bastante consternada com a realidade retratada nesse episódio. Essa moça não estava em situação de rua, porém era uma das milhares de mães que não estão conseguindo nem comprar leite para os filhos, e que o último recurso é pedir, mendigar, implorar, mesmo que só com o olhar, alguma ajuda. A cena desse dia tem se repetido nas portas de supermercados, nos açougues, nas padarias, e é de uma crueldade indigna, inaceitável, não há como fechar os olhos.
Mas, nesse dia, outra coisa me tocou também – a escolha do garoto.
Kinder Ovo, recheado de imaginação. Assim é o slogan desse chocolate, que promete momentos inebriantes aos pequenos consumidores. Eles duram um instante, mas dizem tudo. Eles são mágicos.
Não quero, aqui, me aprofundar na discussão sobre a falta de responsabilidade social da indústria voltada ao mercado infantil, quando coloca uma comunicação com esse teor. Mas não posso deixar de atestar, nessa crônica, minha revolta em relação à falta de consciência da dimensão do problema que as mães brasileiras de baixa renda ou, melhor, de nenhuma renda, estão enfrentando.
São milhares de mulheres que não têm arroz e feijão para colocar na mesa, que se prestam a mendigar por leite na porta de uma farmácia junto com os filhos, e que precisam, mais do que tudo, de alimentos nutritivos. Promover um produto que tem somente 20 gr de chocolate com a promessa de “instante mágico”, se aproveitando da ingenuidade infantil é, no mínimo, uma afronta!
Mas essa discussão fica para um outro fórum, não para essa crônica.
A fome. Reflexão diária despertada em cada esquina, em cada farol vermelho… mamãe dizia que se cada um de nós ajudasse a pessoa necessitada que estivesse mais próxima o problema estaria resolvido. Fico pensando se hoje ela diria a mesma coisa…