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Manual atualizado da sofrência

  • Foto do escritor: Ana Helena Reis
    Ana Helena Reis
  • 22 de ago.
  • 2 min de leitura

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Procurando pela origem da palavra, descobri que se trata de um neologismo da língua portuguesa, formado pela junção de “sofrimento” e “carência”, sentimentos associados à falta de alguém, normalmente em uma relação amorosa.


Acredito, porém, que a sofrência vai além disso: é o sofrimento causado também por outros tipos de vazio, ausência e perda.


Durante a pandemia, depois de mais de dois anos de restrições, aprendemos a reconhecer algumas dessas ausências:

1 – Sofrência pelo distanciamento dos amigos. Algumas pessoas mantiveram contato apenas com um círculo pequeno; outras, mais rigorosas, cortaram qualquer convivência. Os encontros virtuais, que no início tinham até certa graça pelo inusitado, com o tempo se tornaram enfadonhos. De amigos íntimos, passamos a conhecidos — a conversa já não fluía. Foi uma sofrência nostálgica, a percepção de que, pelo hiato imposto, a amizade nunca mais seria a mesma.


2 – Sofrência pela perda do prazer gastronômico. Aqui não me refiro à perda de paladar, mas à impossibilidade de frequentar bares e restaurantes. O delivery banalizou o momento da refeição, tirando-lhe o brilho. Descobrimos que o sabor não está só no prato, mas no ritual, no encontro, no ambiente.


3 – Sofrência pela inutilidade do que acumulamos. Roupas sociais, malas de viagem, louças de festa, cartões de visita… tudo ficou guardado, sem função. A sofrência, nesse caso, não era pela perda, mas pela constatação da inutilidade: “Fez sentido acumular tantas coisas?”


Essas foram algumas das sofrências que marcaram aquele tempo. Mas a vida seguiu, e novos vazios começaram a se revelar.

4 – Sofrência pela falta de tempo. Depois de uma rotina desacelerada, hoje a sensação é de estarmos sempre correndo para “recuperar o tempo perdido”. Voltaram o trânsito, as agendas lotadas e a pressa.


5 – Sofrência digital. Se antes a queixa era a distância, hoje é o excesso de conexão: reuniões online que não acabaram, grupos de WhatsApp sem fim, redes sociais que nos roubam silêncio e presença.


6 – Sofrência pelo custo de vida. Prazeres simples, como sair para jantar ou viajar, tornaram-se pesados para o bolso. A cada escolha, a saudade de uma vida menos cara.


7 – Sofrência climática. Ondas de calor, enchentes e queimadas lembram que o planeta também sofre. E que nossa segurança depende de algo maior do que nós.


8 – Sofrência das relações frágeis. Amizades e vínculos que pareciam sólidos revelaram-se frágeis. Algumas relações se fortaleceram, mas outras nunca mais voltaram a ser como antes.


9 – Sofrência da memória. Muitos carregam ainda a sensação de que o tempo pandêmico ficou suspenso, deixando lacunas na lembrança, marcas sutis de ansiedade e esquecimento.


Carência, perdas, faltas... poderíamos listar muitas outras. Mas, ao refletir sobre elas, me deparei com a mais grave das sofrências: perceber que, se tudo nos faz falta, é porque o que mais nos faz falta está dentro de nós.

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1 comentário

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guillermo piernes
02 de set.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Didática e como sempre, deliciosa leitura

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