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Velórios virtuais

  • Foto do escritor: Ana Helena Reis
    Ana Helena Reis
  • há 2 dias
  • 2 min de leitura
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Elas escolheram sempre a mesma mesa, no canto da cafeteria — aquela perto da janela, com vista para a rua movimentada. Um ritual silencioso: dois cappuccinos, celulares na mesa e o feed de notícias aberto. Foi entre um gole e outro que o suspiro da mais falante das duas anunciou o assunto do dia:

—      Você conseguiu descobrir do que faleceu Diane Keaton?

A outra levantou os olhos da tela, com a seriedade de quem comenta a morte de alguém da própria família.

—      Eu não, amiga. Já li todos os posts sobre a morte dela, até a declaração dos filhos… mas ninguém revela nada. Justo pra nós, que somos quase íntimas dela.

Intimidade de fã, daquelas que atravessa décadas de filmes, romances, premiações e fofocas de revista.

—      Quase íntimas mesmo! — completou a primeira, já animada. — Assistimos a maioria dos filmes, acompanhamos aquele romance com Woody Allen… E você reparou na cara do Al Pacino no enterro?

A amiga assentiu com um ar grave, como se tivesse estado lá.

—       Sim! Agora não adianta se arrepender de não ter se casado com ela. No fim, ela acabou não casando com ninguém. Mas convenhamos, uma mulher como ela não nasceu pra se amarrar.

Riram discretamente, como quem partilha segredos de bastidores.

—      Pena não estarmos lá… — ela disse, olhando para o nada. — Queria muito ter dado um último adeus.

Havia uma ternura estranha naquilo: choravam a morte de alguém que nunca tinham encontrado.

—      Pena mesmo. E o Robert Redford então? — a outra retomou, aquecida pelo drama. — Ontem revi Out of Africa e chorei só de lembrar. Não é à toa que a Meryl Streep se apaixonou por ele ali mesmo.

—       E viu a homenagem do Andrea Bocelli? Fiquei arrepiada com o gesto dele de ficar com o cachorro de estimação dele… como era mesmo o nome do cachorro?

A pergunta ficou suspensa no ar. A resposta veio, seca:

—      Menina… fiquei chocada quando soube que essa história é fake. Tudo inventado por IA.

O silêncio que se seguiu foi mais eloquente que qualquer indignação.

—      Jura? — sussurrou a primeira, como quem perde o chão. — Mas então tudo aquilo que saiu no Facebook era falso?

As duas se encararam por um instante, os celulares quietos sobre a mesa. O cappuccino já esfriava.

—      Bom… — disse por fim a outra, tentando reorganizar o mundo. — Pelo menos a história da mãe da Preta Gil é verdadeira. Achei lindo ela ser amparada pela Flora Gil.

—       Lindo mesmo — concordou a amiga, retomando o fôlego. — Pena não morarmos no Rio, senão teríamos ido ao enterro, né?

Riram de leve, cientes da contradição, mas sem coragem de desmontá-la.

—      Lógico! — disse ela, com convicção. — Somos quase íntimas dela. Quer dizer… nem conhecemos pessoalmente, mas eu me sentia da família.

Do lado de fora, carros passavam, pessoas seguiam seus trajetos, alheias àquele luto emprestado. A última frase veio quase como um suspiro:

—      É aquela coisa de alma, né? — ela completou, com doçura.

A amiga levantou os olhos da tela e sorriu, agora com ironia calma:

—      Ou de algoritmo.


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