Caricatura de um ponto de ônibus, feita na década de trinta por Octávio Pupo Nogueira
ABRIL DE 1930
Coberto com um pano preto, fiquei hibernado, de acordo com minhas contas, por quase 100 anos. Agora, pelas movimentações, o vira pra cá, vira pra lá, e por uma brisa que finalmente consigo sentir, acredito que vão me colocar perto de uma janela. Isso significa liberdade, finalmente!
À época do confinamento, estava comigo um grupo de passageiros, à espera dos ônibus da CMTC. Assim que possível, vou reencontrá-los, pois devem estar procurando por mim, congelados também durante décadas.
Me lembro perfeitamente de onde eu ficava - esquina da Rua Avaré com Praça Agnon, no bairro do Pacaembu, em São Paulo. Os ônibus diminuíam a marcha, encostavam no meio-fio e abriam as portas dianteiras, bem na minha frente. Um a um, sem empurra-empurra, entravam os passageiros.
Naquele dia, lá parou o ônibus 5318- Anhangabaú, levando as duas senhoras ao centro. Iam fazer compras e tomar chá na Casa Mappin, da Rua XV de Novembro. Graciosas, se postavam em fila, sempre acompanhadas do esposo da mais velha. Engravatado, portando um chapéu preto Fedora de lã, a barba aparada e óculos redondos com aro de ouro, ele colocava um braço protetor ao redor das moças para que nenhum aventureiro se aproximasse.
A fila era organizada, e todos respeitavam a ordem de chegada. As crianças, devidamente uniformizadas com calças curtas, pois calças compridas eram usadas somente por adultos, ficavam à frente. Para meu calvário, isso significava estar bem ao meu lado. Traquinas, me infernizavam, rodopiando com uma das mãos na minha cintura, o que me deixava um pouco tonto. Estavam sempre acompanhadas das irmãs franciscanas que, com seus hábitos pretos, esperavam o 8045- Sé, para levá-las à catequese. Terços na mão, as freirinhas rezavam a novena enquanto aguardavam.
No geral, a conversa era animada, mas em voz baixa. O traço destoante era de um gazeteiro contumaz, que lia alto o periódico Diário Popular, propagando as últimas notícias do dia.
Um grupo de trabalhadores do comércio se aglomerava na calçada, um pouco mais atrás. Pegavam o 152 para a Consolação, ou o 5631 para o Largo de São Francisco, preocupados em assumir o balcão de lojas como a Doural, a Casa Godinho e a Niazi Chohfi. Queriam chegar antes da abertura para poder preparar a mercadoria a contento e se apresentar para a freguesia com um cordial sorriso.
Mais para o final da fila, as mulheres que seguiam para os trabalhos domésticos na casa das famílias abastadas, moradoras da Av. São Luiz. Tagarelando sobre a vida da família a que serviam, tomavam o 7228 e desciam na Praça Ramos. Aproveitavam o momento para flertar com o jovem policial de farda cinza e quepe meio caído de lado, que assiduamente pegava o ônibus no mesmo horário que elas.
Não sei quando resolveram me substituir e me aprisionaram como memória nesse quadro, jogado no porão.
Hoje resgatado e colocado perto da janela, avisto o lugar que, por direito, é meu. No próximo capítulo, vou retomar o meu posto. Aguardem!
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ABRIL DE 2023
Do meu posto de observação, aqui, ainda emparedado, espero a chegada deles ansioso, depois de tanto tempo de distanciamento. Acho que não terei dificuldade em reconhecê-los, afinal eles ficaram registrados nessa pintura.
Os primeiros a se aproximar me deram a impressão de serem os rapazes trabalhadores do comércio. Mas que estranho – todos usam fios nos ouvidos, conectados a uma carteira de metal. Será um aparelho de surdez? Se sim, o que pode ter acontecido que todos ficaram surdos? Observando mais um pouco, talvez seja isso mesmo, pois não conversam, só mexem no aparelho, provavelmente para ajustá-lo. Estão um tanto mal trajados, provavelmente perderam o emprego e devem ter tido dificuldade para se recolocar depois da surdez. Que triste!
As crianças chegam correndo, pulando, isso não mudou nada! Mas que trajes são esses? Não se usa mais uniforme escolar? O que são essas calças azuis desbotadas, tipo rancheira, para ir à escola?
Isso, porém, não é nada. Começo a ficar nervoso, pois não diviso as irmãs de hábito acompanhando as crianças e, sim, uma menina que parece ter quase a mesma idade deles, toda vestida de branco. Deve ser uma noviça, mas é estranho que os pais permitam que uma noviça dessa idade acompanhe seus filhos. Não é para menos que ouço elas gritarem Babá para se referir à menina. Que irresponsabilidade! Onde estariam indo, se não vejo a mala de livros de couro na mão das crianças?
Logo vejo chegando o grupo de domésticas e, pelo que escuto, continuam tagarelando a respeito da vida de seus patrões. Mas já não confraternizam com o policial, que se sentou no banco meio isolado. Preferem conversar com a noviça, que estranho!
Andando pela fila já formada, reconheço o gazeteiro. Mas vejam só, ele agora tem uma bolsa a tiracolo e de lá distribui os periódicos impressos para quem quiser, e sem cobrar nada! Quem diria! E eu que o achava inconveniente, que gesto bonito!
Por último, identifico as duas moças e seu acompanhante descendo a ladeira em direção ao ponto. Só não desabo porque estou emparedado... as moças em trajes sumários, pernas totalmente de fora, o rapaz de calças curtas e sapatos de pano com solado de borracha. Cabelos pelo ombro, desgrenhados e com alguns trançados presos com missangas, nunca vi nada tão apavorante!
O desconcerto que me causou o visual do grupo não foi nada. Fui me encolhendo de vergonha ao ver o casal se engalfinhando, se essa pode ser a palavra para tanta indecência. Agarrados, trocam beijos sem o menor pudor enquanto caminham. A cena ainda piora quando se sentam no banco, debaixo da cobertura.
Olho para a rua e para o lugar que tanto sonhei em voltar. Sinto lágrimas brotando pela pintura, apagando tudo aquilo que algum dia fez sentido para mim.
Muito bom!