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O alfinete

  • Foto do escritor: Ana Helena Reis
    Ana Helena Reis
  • 9 de jul. de 2022
  • 3 min de leitura

Atualizado: 24 de mai.


Fátima sentou-se ao pé da cama da pequena Pérola. A penumbra do quarto, o perfume de lavanda dos cachos recém-lavados da menina e o calor que exalava daquele corpinho por debaixo do edredom florido a envolviam num doce torpor. Era seu momento favorito do dia — onde tudo se calava, menos o amor. Intimidade pura, longe de tudo e de todos.


O barulho de louça vindo da cozinha a trouxe de volta à superfície. A dorzinha persistente reapareceu — como a pontada de um alfinete invisível, alojado na alma. Era sempre assim quando o pensamento escapava para a vida real.


Olhou mais uma vez para a filha, que ressonava baixinho, e desceu as escadas para encontrar o marido. Cândido a esperava com a mesa posta, sorriso tranquilo no rosto. Um homem simples, que amava com constância. Invejava, às vezes, a simplicidade com que ele enxergava tudo.


A conversa seguiu o roteiro de sempre: a escola, o tempo, as contas, e enfim, Pérola — o assunto predileto de Cândido. Fátima falou da festinha de São João da escolinha, que seria no dia seguinte, e de como já estava tudo pronto: os pés de moleque, a cocada cremosa, a pipoca caramelada.

— E o vestido? — ele quis saber, animado.

Ela correu até o armário e trouxe os trajes: vestidos idênticos, azul-claro, sem estampas.

— Não era pra ser xadrez? — ele perguntou, franzindo a testa.


Sentiu uma fisgada. Silêncio.

— Xadrezinho de chita, Cândido? Nem pensar. Não valoriza a menina. Ela precisa se destacar. Você sabe como são as mães da escola... os comentários. Melhor evitar.


Ele a olhou por alguns segundos, depois desviou os olhos, vencido.

"Ele não entende", pensou ela. "Sempre fui tão boa mãe. Só quero evitar que ela sofra. Faço isso por proteção, só por isso."


Depois do jantar, Fátima se refugiou no terraço. O céu estava limpo, a lua cheia iluminava o quintal. Pensou nos primeiros dias com Pérola — o hospital, os papéis assinados, a ansiedade. A menina era tão pequena, os olhos dois grãos de jabuticaba, os fios de cabelo pretos e ralos. A alegria foi imensa. Nunca duvidara do amor. O que sentia era amor puro.


Mas, com o tempo, vieram os olhares. Nos parques, nas lojas, nas festinhas. Vieram as perguntas veladas, os sorrisos enviesados, as dúvidas disfarçadas de elogios. "É sua filha mesmo?" "Que mistura linda!" "Adotou de onde?" E, com os olhares, vieram os espelhos — os internos. Fátima passou a perceber o que evitava enxergar: Pérola se tornava, dia após dia, mais parecida com a mãe que nunca conheceu — e menos parecida com ela.


O cabelo ganhava volume, os cachos mais fechados. A pele escurecia. Os traços se firmavam. Fátima começou a controlar pequenos detalhes: o sol, o hidratante, os penteados. Passou a escolher roupas neutras, "elegantes", que a poupassem dos rótulos, que a fizessem caber — não em si, mas no mundo.

Mas o alfinete cutucava.


Lá de dentro, ouviu Pérola chamá-la. Subiu e encontrou a menina em pé no berço, olhos sonolentos e um brinquedo na mão.

— Mamãe, posso levar meu cabelo solto amanhã? Igual da Laurinha?


Fátima congelou. Sentiu-se traída por si mesma. Laurinha era a única coleguinha negra da turma, com cabelo crespo, que a mãe deixava sempre solto, volumoso, com laços coloridos.

Pérola a olhava com a esperança infantil de quem ainda não aprendeu a ter medo da própria aparência.

— Não, filha... Solto, não. É melhor preso, tá bom? Fica mais arrumado — respondeu, quase num sussurro.


A menina assentiu, triste. Deitou-se. Fátima saiu do quarto com um nó na garganta.

Na sala, Cândido estava com um álbum de fotos no colo. Chamou-a.

— Lembra dessa? — mostrou a imagem de quando trouxeram Pérola do abrigo.


Na imagem, ela, Cândido e o bebê envolto num cobertor cor-de-rosa. Fátima, sorrindo com os olhos marejados. Cândido, radiante. Pérola, serena.

Ela sentou-se ao lado do marido e não disse nada. Apenas deixou que as lágrimas corressem, quentes, silenciosas. Ele não perguntou. Apenas a abraçou.


Ali, naquela sala, entendeu que o amor que sentia era verdadeiro, mas não bastava. Proteção não era esconder — era sustentar. Amar não era moldar — era libertar.


No dia seguinte, Pérola foi à festa de São João com o cabelo solto, cheio de lacinhos azuis e brancos. O vestido era o mesmo, mas os olhos da menina brilhavam de outro jeito. Pela primeira vez, Fátima não sentiu o alfinete cutucar.


Sentiu só o amor. Sem culpa. Sem silêncio.

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