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Pérola da noite

Fátima sentou-se ao pé da cama da pequena Pérola. A penumbra do quarto, o perfume de lavanda dos cachos recém lavados da menina e o calor que exalava daquele corpinho por debaixo do Edredom florido a envolviam num doce torpor. Momento de comunhão com o que havia de mais sublime nessa intimidade entre as duas, longe de tudo e de todos.


O barulho de louça a fez aterrissar e trouxe de volta aquela dorzinha persistente, como a de uma ponta de alfinete na roupa, toda vez que pensava na vida.

Olhou mais uma vez para a filha, que ressonava baixinho e desceu as escadas para encontrar o marido, que a esperava para o jantar.


A conversa começou com a prosa morna do dia, e foi caminhando para o assunto preferido de Cândido – Pérola. Fátima comentou da festinha de São João da escolinha, que seria no dia seguinte, e tudo o que ela deveria levar já estava pronto: os pés de moleque, a cocada cremosa e a pipoca caramelada.


O marido quis saber do vestido caipira, e ela correu a mostrar o que tinha comprado: trajes iguais para ela e para a filha, azul claro. Sentiu uma agulhada. Silencio.

Ele pode espernear, mas vestido xadrezinho de chita nem pensar, não cai bem para Pérola. Pra que colocar uma roupa que não valoriza a menina? As mães da escola, os comentários. Cândido não entende, acha que é besteira. Toda hora esses questionamentos. Se prendo o cabelo, se não deixo tomar sol... se irrita com tudo. Fácil pra ele, né? Sempre fui tão boa mãe. Só quero evitar que ela sofra. Faço isso por proteção, só por isso.


Terminada a refeição, se refugiou no terraço. O amor por essa criança, desde que a teve nos braços pela primeira vez, era o que a fazia se sentir plena. Gostava da maternidade. Sorriu ao se lembrar da alegria que ela e Cândido sentiram ao buscar aquela bebê de bochechas rosadas, olhinhos de jabuticaba e alguns fios de cabelo preto.


Os primeiros dias, os passeios, os banhos de sol no jardim. Pérola crescendo, cada dia mais graciosa, mais viva. O corpinho tomando forma, o cabelo mais anelado, a pele cada dia mais escura. O alfinete a cutucar, insistente, a carne do seu coração.


Noite escura, silenciosa angustiante. Lembrou dos tempos em que ia à igreja com a mãe, se confessar. O cheiro de incenso e o alívio que sentia, ao terminar o ato de contrição.


Culpa, arrependimento, perdão – uma sequência que parecia tão fácil, tão linear, tão redentora. De fora para dentro. Sabia que seu caminho, hoje, tinha que ser feito de forma inversa.

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