Em frente ao espelho, Consuelo se preparou para mais uma apresentação. O Cabaré estava cheio, as mesas apinhadas de cavalheiros à espera de sua aparição. Bebidas circulavam em meio à fumaça dos charutos e cigarrilhas, oferecidos pelas garçonetes. O ritual era de troca de fumo pelos bilhetinhos às dançarinas, com o nome escolhido para o final da noite.
Entrou no palco. Seus olhos percorreram a plateia, em busca de um rosto. Lá estava ele. Um tremor gelado percorreu seu corpo, enquanto gotículas de suor lhe brotavam na testa. Sorriu. Mecanicamente, iniciou o espetáculo, rodopiando pelo palco enquanto tentava ordenar seus pensamentos.
A imagem da garrafa de vinho em cima da mesa dele não desgrudava dos olhos da dançarina. O bilhetinho seria inevitável, mas hoje ela ansiava por esse momento. Era sua oportunidade. Tentou evitar o encontro com seus olhos, com medo de que eles a traíssem.
Podia sentir o peso do corpo balofo se esfregando entre suas coxas, o bafo resfolegando a álcool em sua nuca, o gosto ácido daquele membro invadindo sua boca. Preferia, nesse momento, não pensar no que se seguia a esse rito inicial, e do terror a que era submetida a cada noite.
A música era envolvente, inebriante. Os movimentos da saia esvoaçante a transportavam para um tempo em que sonhara ser dançarina, com o saiote de tule que a avó conseguira comprar com suas economias. A menina que foi, treinava passos em frente ao pequeno espelho do quarto, sonhando com o futuro na cidade grande. Dançarina da ilusão.
Os últimos acordes a trouxeram de volta ao palco. Um reboliço no estômago prenunciava a aproximação do momento em que estaria a sós com seu cliente, que já se movimentava com a sacola dos instrumentos na mão. Tudo deveria parecer perfeitamente normal e dentro da rotina do cabaré.
A sequência era sempre a mesma. Ele a escolhia e ela ficava à espera, no quarto, já despida. Abriu novamente a gaveta da mesa ao lado da cama, para se certificar de que o pacotinho estava ali.
A porta se abriu. Consuelo olhou pela última vez para seu algoz. Respirou fundo. A garrafa de vinho no chão, ao lado da cama, como havia previsto. Rapidamente abriu a gaveta da mesinha. Dividiu nos dois copos e serviu o vinho. Fez o sinal da cruz. Ofereceu o brinde. Sorveu lentamente a bebida, seu caminho de vingança e redenção. Nos estertores finais, viu a imagem distorcida de seu saiote de tule.
Texto preparado para o Mosaico Santa Sede-2022
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