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A redenção do palito

  • Foto do escritor: Ana Helena Reis
    Ana Helena Reis
  • 5 de dez. de 2024
  • 2 min de leitura

Atualizado: 25 de jun.

Outro dia, tive um pesadelo estranho. Nele, surgiam figuras parecidas com palitos de dente, só que descomunais — verdadeiros troncos de madeira com unhas nas pontas. Carregavam pedaços de carne, couve, cascas de pão e outros restos parcialmente mastigados, como se limpassem uma boca gigante.

Acordei assustada, pensando no quão grotesco tinha sido aquele sonho. Só podia ter sido reflexo de uma cena que presenciei recentemente, durante um almoço de confraternização: uma faxina bucal feita ali mesmo, sem a menor cerimônia.

A necessidade de manter os dentes livres de fiapos é antiga. Pesquisando um pouco, descobri que a humanidade já recorreu a gravetos, espinhos, lascas de ossos e até bambu para essa função. E então surgiu o salvador da pátria: o palito de dente, objeto difundido em praticamente todas as culturas.

Aqui no Brasil, ele ganhou até status de ícone pop com os famosos palitos Gina, criados em 1947 e imortalizados, em 1975, com a imagem da modelo Zofia Burk estampada na embalagem — símbolo de elegância e limpeza pós-refeição.

Mas o tempo passou, os dentistas torceram o nariz, e o palito foi sendo banido em favor da escova e do fio dental. Além disso, a etiqueta tratou de decretar que palitar os dentes em público era uma afronta ao bom gosto — afinal, ninguém precisa assistir à remoção dos fiapos do prato anterior.

E aí voltamos ao meu pesadelo. Porque, ao que tudo indica, a ausência do palito à mesa abriu espaço para algo muito pior: o dedo indicador, metido sem pudor na boca escancarada, numa tentativa desesperada de desalojar restos de comida. Uma cena traumatizante, digna de filme de terror — e recorrente o bastante para invadir meus sonhos.

Diante disso, proponho uma solução ousada e civilizada: a redenção do palito. Se for usado com discrição, cobrindo a boca com a outra mão, é infinitamente mais educado do que o dedo, cujo destino após o uso preferimos não imaginar. Que o palito retorne às mesas de restaurantes, bares e até às nossas casas, elegantemente disposto ao lado do guardanapo, como um gesto de cortesia com os convivas.

Dependendo da ocasião, por que não oferecer palitos sofisticados, personalizados, quem sabe até com o nome do anfitrião gravado? Afinal, o dedo intruso aparece em todos os ambientes, do boteco à alta sociedade. É hora de dar ao palito o lugar que ele merece.

E para selar esse retorno triunfal, penso até em convidar Zofia Burk — hoje com seus honrosos 75 anos — para ser madrinha da campanha “Volta, palito!”. Sim, pode ser que esse projeto me renda outro pesadelo, mas quem sabe também um bom crowdfunding? Afinal, o futuro da etiqueta bucal talvez dependa disso.

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