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Passaredo

Amanheceu. Por uma fresta da veneziana vejo entrar um tímido raio de luz. Preguiçosa, encolho, estico, espero. Os pensamentos voam para a agenda do dia e olho no celular. Suspiro. Como é bom envelhecer! Espaços vazios ao invés de meetings, presentations, tudo sempre em inglês, com uma solenidade que me colocava em alerta. Produzir, entregar, gerenciar, o dia passando rápido e a sensação de que ainda havia muito a cumprir e não deu tempo. O ritual do banho às primeiras horas do dia, o traje social, o trânsito na ida para o escritório, ditando tarefas para o To do List gravado em áudio.


Espaços vazios – será? Nada disso, somente espaços livres para fazer o que quiser, tiver vontade, der na telha. Abro a janela. O dia se apresenta radioso, dia de passaredo. Logo me vem à cabeça a estrofe de Kleiton e Kledir: “Quero ver o passaredo / Pelos portos de Lisboa / Voa, voa que eu chego já".


Meu porto é logo ali, no parque, na trilha embaixo das árvores, que caminho na minha melhor companhia. A música de Juarez Moreira me diz Bom Dia, e eu retribuo saltitando, sozinha. Tiro os sapatos para sentir a umidade do orvalho, ainda presente, me sento ao pé da árvore para observar o baile dos pássaros no céu e busco pelo carrinho de sorvete – acho que vai bem um picolé.


Sinto que causo um certo espanto entre os passantes, mas dou de ombros, lembrando Fernando Pessoa: “Tudo é ousado a quem a nada se atreve”. Meu dia ainda está no começo, e tenho todo o tempo desse momento em flor – o próximo deixo ao acaso.


Tempo, tempo, tempo. Leva em revoada a juventude, que busca os galhos altos para colher os frutos do sucesso, para colocar no lugar o tapete de flores da humildade, que perfuma o chão da velhice.

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